12.10.16

329 horas depois - Parte 1



Acordo numa manhã de férias da Páscoa. Início a minha procura pelo telemóvel por toda a cama. Finalmente alcanço-o no ângulo mais improvável do lado contrário aquele que eu pensava estar, como sempre. Abro um só olho enquanto tento baixar a luminosidade do ecrã que teima em estar nos máximos, como sempre. Consigo perceber que são oito e pouco da manhã. A minha consciência mais responsável e sempre chata vem ao de cima. "Vá lá, acorda Patrícia, não queres voltar a ficar com os horários trocados durante as férias, como sempre." Entro no facebook enquanto pisco rápido os olhos para me habituar a luz. 

Bruxelas.
"Oh Patrícia, ainda falta um mês, pára de arranjar temas e desculpas para continuares a sonhar."
Aeroporto. 
"Sim, nós já sabemos que vais ter os joelhos a tremer assim que chegar o dia, podemos prosseguir e acordar para a vida?"
Bomba. 
"Claro que vai ser super divertido e sempre a bombar como a Joana te prometeu. Mas será preciso atirar o edredon com uma perna para fora da cama para que te levantes?"
Pisquei mais uma vez, enquanto percorria o feed sem o olhar, numa tentativa de que aquele movimento horizontal do polegar contribuísse para um despertar mais eficiente. 
Bomba, outra vez.
"Ok, desisto oficialmente de mim mesma, não consigo acordar hoje."

10 segundos depois... BOMBA?!?!?
Salto da cama. Como assim, o que é que se está a passar? Percorro todo o meu feed e em todas as notícias aparecia esta junção de palavras que ainda hoje - enquanto vos escrevo - me causa arrepios: Bruxelas, aeroporto, bomba e número estimado de mortos. Não consegui acreditar e em três metades de segundo desci as escadas da minha casa até à televisão. Todas as televisões. Até aquele caixote que não era ligado há anos. Eu queria ter todos os canais ao mesmo tempo. Toda a informação que me permitisse descobrir que tudo aquilo não passava de uma merda de um engano qualquer. Joana, Joanaaaa, Joanaaaaaaa, onde estás caraças? Vejo no chat que não está online há uma hora. Envio-lhe mensagem e ela não responde. Penso que ela nunca iria estar no aeroporto neste momento. Já deve ter ido para as aulas e está tudo bem com ela. Levanto-me do sofá e penso em ir fazer um chá para me acalmar. Optar por camomila e não por café para bebida de pequeno-almoço, foi algo que nunca tinha feito. Mas que mais me restava se tinha o coração nas mãos. A Joana continuava sem responder, mas eu estava conformada com a ideia de que ela nunca estaria no aeroporto. Mas eu podia estar. E se eu não tivesse marcado a viagem para Abril e sim para Março? Eu podia estar ali. Queria parar mas não conseguia. Queria ser forte mas não conseguia. Fiquei com medo, admito, muito medo até. As imagens que passavam em qualquer canal também não ajudavam que fosse de outra forma. Agarro-me à chávena a escaldar para aquecer as mãos geladas. Até que na cozinha consigo ouvir o som de uma nova notícia. "Actualização: há conhecimento da ocorrência de uma segunda explosão junto a uma saída de metro no centro de Bruxelas. Forte probabilidade de ser mais um ataque bombista."

Os ossos gelaram-me como costumam gelar quando entro no mar e a água parece granizo. Gelaram de uma forma pior. Gelaram sozinhos enquanto o sangue simplesmente paralisou. Queria andar e aproximar-me da sala mas não era capaz. A Joana não me responde. A Joana não devia estar no aeroporto mas podia estar no metro. Suposições, suposições, suposições. O meu pai desce as escadas e pergunta-me o que se passa e porque é que a televisão está tão alta. Inspiro e sem querer acreditar naquilo que ia dizer, respondo: "É... um aten..tado." Dou passos bruscos até ao telemóvel e escrevo uma segunda mensagem. Páro e vejo que a mensagem já foi vista por ela embora não tenha respondido. Peço-lhe por favor para ela me dizer apenas que está bem, que está em casa ou pelo menos a ir para lá. Nove minutos e meio depois, ela responde-me. Está bem, em casa e meia hora antes da explosão tinha estado a voltar de metro. Eu já sabia que na vida havia grandes sortes e azares diferenciados por simples segundos, mas nunca tinha sentido um sentimento tão forte de sorte inundado no sangue de tanto azar, tristeza e revolta. 

(A fotografia é da Place de la Bourse em Bruxelas, onde as pessoas se reuniram e fizeram um memorial espontâneo de homenagem às vítimas dos atentados. Foi tirada por mim na tarde do dia 20 de Abril. Achei que pertencia mais a este post.)

2 comentários:

  1. Há muito tempo que não me arrepiava tanto ao ler fosse o que fosse. Não consigo sequer imaginar o sentimento. Obrigada por teres partilhado. Obrigada por teres voltado, sentimos a tua falta.
    Um beijo enorme
    http://wallflowerbyines.blogspot.pt/

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    1. O teu comentário aqueceu-me o coração, Inês.
      Quero agradecer-te mas já não tenho obrigadas que sejam suficientes :')
      Um beijinho ainda maior*

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